sexta-feira, 29 de abril de 2011

17. Trip




Tenho sono. Tenho muito sono mas por favor não me deixes dormir. Fala comigo. Estas foram as últimas palavras que disse. O jogo de futebol até estava a correr muito bem. Pudera. Do lado de cá estava eu, com quase quarenta anos de idade, uma vida feita de correrias. As poucas pausas nem sei como as aproveitei. Entre o computador e a plateia da Gulbenkian. Nunca me sairá da cabeça aquela bailarina que pela primeira vez vi num pas-de-deux com um bielorrusso acabado de chegar do Bolshoi. Era esguia, linda e vestia um tutu cor-de-rosa. Não havia mulher mais parecida com a bailarina que todas as manhãs me acordava, quando num ápice, às sete da manhã, se levantava da sua caixa de música e me despertava com os primeiros acordes do Lago dos Cisnes. Poucas mais pausas tinha. Almoços de dez minutos, muitas vezes de pé, reuniões extenuantes, directivas difíceis de fazer cumprir, trânsito de manhã e à noite, stress. Do outro lado, um miúdo de sete anos, vivíssimo, audaz, mas ainda sem experiência na arte da finta e do golo. Uma corrida mais acelerada, um pique esgazeado. Golo! De repente aquela sensação de ficar sem braços e sem pernas, o desfalecimento, as frases supra-citadas, a abertura das portas do túnel. E a vertiginosa viagem até lá, até ao fundo, até ao lado de lá, a entrada noutra dimensão. Voltei ! (afinal esta foi mesmo a última palavra). No momento em que voltei para trás, ouvi de novo o som da minha caixa de música. Quem sabe, um dia contar-lhes-ei como é do outro lado, mas hoje não. A bailarina ainda tem um tutu cor-de-rosa.

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terça-feira, 26 de abril de 2011

15. Céus



Sentados à mesa, uma sóbria toalha aos quadrados azuis e brancos, o ti Zé Baptista, também conhecido por  Ti Zé da Mulata, já que a sua mãe, talvez descendente de alguns escravos trazidos outros tempos das colónias, tinha todas as características de africana (e a sua avó também, não se sabendo de quantas gerações vem o apelido da mulata) e eu, um canjerão de tinto, dois nacos de pão, um pedaço de toucinho gordo, acabado de tirar da salgadeira, come deste que este não faz mal ao colesterol e eu a pensar, pois não, mas faz-me mal a mim, e dois queijinhos de ovelha, frescos acabados de fazer pelo mais puro método artesanal, ficamos ali na conversa. Não sei se das suas, muito ancestrais, raízes africanas, quem quer ouvir o Ti Zé da Mulata a falar é ouvi-lo a falar da Natureza. Sempre com temor, lembra-se bem das enxurradas de 1994 que, sem o avisarem previamente, lhe arrastaram a casa durante a noite, o curral também e lhe mataram mais de 60 ovelhas. Graças a Deus que a ele as águas não o levaram, pois a essa hora andava a juntar as vacas lá no cabeço. Oh Mimosa, oh Violeta, aiiiiiiiiiiitcha! Rais parta as bichas que nem com este temporal se querem mexer. Oh Malhada! O pior foi quando chegou à aldeia… mas isso foram outros tempos, águas passadas. A Natureza! Sempre a temeu, sempre a amou. Tirou do bolso, para me mostrar, uma kodak, como ele lhe chama, diz que adora fotografar flores. O pior é que a revelação, sabes, custa muito papel e eu não ganho pra isso. Levantou-se e foi lá dentro buscar um velho recorte de jornal. Até já ganhei um prémio. Lá estava, José do Carmo Baptista, Menção Honrosa na 1ª Mostra Fotográfica da Consolação. Parabéns Ti Zé. Tão sinceros que o deixei emocionado. E ainda tu não sabes tudo. A minha paixão é os pássaros. Mas não a fotografia, não, que lá para esses tarrassos (queria dizer as máquinas) caras e complicados, ele não estava para aí virado. Era a observação, as cores, os chilreios, os ninhos, os acasalamentos, as crias, a alimentação, o voo. Estive mais de 20 minutos a ouvi-lo, em descrições tão perfeitas que me levaram a acordar ao cantar dos rabilongos e dos pintassilgos, a pintar o brilho anil do melros azuis, a arrepiar-me com a natural rudeza dos grifos, a ajudar a construir os ninhos às cegonhas, a olhar para os céus para descortinar as migrações do rouxinol-do-mato. E a cheirar. Havia um cheiro ali me perturbava. A Chica Domingas, que há vários anos trabalhava para ele e que, dizem algumas línguas, se deitava na mesma cama, acabava de chegar com uma frigideira de passarinhos fritos, ainda fumegante e mais um canjerão de vinho.

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quinta-feira, 21 de abril de 2011

14. Lisas e coloridas




Abra a boca menino. Era assim que ela lhe gritava, quase desumanamente, quando ele, sentado na cadeira de dentista, quase a vomitar cheiros de éteres e anestesias, de boca aberta, tremia de medo. A dentista, que para ele que ainda não tinha completado 12 anos de idade não passava de uma velha bruxa, de alicate em riste, puxava-lhe violentamente pelo dente, não sei se o de cima se o de baixo, pois que, pela greta da porta, não me consegui aperceber. Abra a boca menino, repetia ela, gritando ainda mais alto. Mas como é que ela queria que o garoto conseguisse manter-se de boca aberta se ela lhe levava atrás, queixada, cabeça e quiçá também o dente. Tenho a certeza que o garoto naquele momento, a mandou à merda. Mas de boca aberta seria tão difícil soletrá-lo quanto difícil seria que ela o entendesse. Depois, a dentista mandou-o cuspir para a tina onde um fio de água corria em permanência. Uma receita de antibiótico e, comida quente nem pensar. Pelo menos durante dois dias. Enquanto cuspia os restos do sangue ele imaginava-se já a correr para a sanita para regurgitar o creme de cenoura gelado ou aquela papa que a mãe tinha a vil mania de lhe fazer com pêra cozida e bolacha Maria. Toda a vida detestou os dentistas e, provavelmente por isso, nunca a Páscoa lhe foi simpática. Hoje, já sem dentes, ri-se por detrás das memórias enquanto chupa uma amêndoa tipo francês.

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terça-feira, 12 de abril de 2011

8. Caraíbas




Hoje tive uma conversa séria com os meus próprios pontos de interrogação. Sempre são sérias estas conversas mas hoje foram talvez um pouco mais. Antigamente, quando eu os interrogava eles ficam completamente perplexos e chegavam mesmo a inverter os seus próprios papéis, fazendo exclamações inesperadas. Por isso as nossas conversas acabavam bastas vezes em reticências. Em reticências, ponto e vírgula, pede a minha consciência para corrigir. Quantas vezes, essas conversas, não passavam de uma folha em branco sem sinais de escrita quanto mais de interrogações. E é por isso que desta vez eu não deixei que nada ficasse ao acaso e comecei logo por colocar os pontos nos is. Ou chegaríamos a uma conclusão, com ponto final e tudo, ou deixaríamos a nossa reflexão para depois. Claro que neste caso nem tão pouco diálogo se faria e o discurso direto ficaria comprometido. Teríamos de mandar recolher os dois pontos e o travessão que se alinhava já para mudar de linha. E foi nestes preparos que a minha imaginação começou a propagar-se em ondas, cada uma como um til, onde um qualquer Aladino de mil e uma noites pudesse subir e viajar, criando nuvens ora circunflexas ora um pouco mais cedilhadas. E imaginação por imaginação, cada um faz as perguntas que quer e que lhe apetece, escreve colocando vírgulas e ous barras is desde que isso não passe de um mero entre parêntesis. Como este.

PS. Lançou mais de uma vez a rede. Primeiro tinha atirado a fateixa. Não percebi. Fateixa e rede. Depois percebi, não era uma âncora tradicional, era de bola para poder deslizar. Remou de um lado para o outro. Remou de novo de um lado para o outro e remou de novo. Depois recolheu a rede e voltou a lançá-la. Lançou mais uma vez. Lançou mais de três vezes e remou sempre de um lado para o outro. Ao fundo um cruzeiro rumou às Caraíbas. E eu nem perguntei porquê.

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segunda-feira, 11 de abril de 2011

7. Prazeres


Hoje comi, hoje comi muito. Comi lasanha. Comi tanta lasanha que é quase impossível que acreditem que eu tenha comido tanta lasanha. Hoje comi muito. Comi muito queijo, queijo fatiado e queijo amanteigado. Hoje comi tanto queijo que é quase impossível que acreditem que eu tenha comido tanto queijo. Hoje comi muito, comi feijoada. Comi um tacho cheio de feijoada. Nem tirei do tacho para o prato. Comi direto do tacho. Comi tanta feijoada que eu próprio não acredito na quantidade de feijoada que comi. Hoje comi enchidos e salgados, salmão e ovos de codorniz. Comi mais de duas dúzias de ovos de codorniz. Comi tantos ovos de codorniz que não sei o que pensaram de mim os que me viram comer tantos ovos de codorniz. Hoje comi muito. Comi amêijoas e camarão e também comi duas cestas de pão de trigo. Comi tanto pão de trigo que até tenho medo que me engorde. Hoje comi mousse de chocolate e arroz doce e comi trouxas-de-ovos. Comi tantas trouxas-de-ovos que acho que me poderão fazer mal ao fígado. Só não comi fígado porque não gosto mas bebi vinho. Não bebi muito vinho porque estava tão entretido a comer que me esqueci que gosto de beber vinho. Estou tão cheio que parece que nas próximas duas horas não vou poder sequer ouvir falar em comida. Nem que fossem apenas percebes acabados de cozer ou um prato de lentilhas com morcela, eu não aguentaria. E no entanto tenho fome. Tenho tanta fome de ti.

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domingo, 10 de abril de 2011

6. Ainda não estão maduros



Quando eu entrei na blogosfera, já lá vão muitos anos, discutia-se a guerra do golfo nos blogs políticos, criavam baby blogs as futuras mães e as recentes também, escrevia poesia quem gostava de poesia, o Pacheco Pereira passou a ser citado na TV por tudo e por nada, bastava que escrevesse no Abrupto qualquer opinião, o pipi, que parece que ainda ninguém sabe quem é, vendia livros aos milhares, o José Mário Silva veio a dar em jornalista e escritor (dos bons, adjectivo eu), o Mexia, o Lomba, o Daniel Oliveira saltaram da blogosfera (alguns já vinham de jornais) para o comentário político em televisão, os Gato Fedorento encontraram neste meio um trampolim para a divulgação da sua escrita criativa.

Não tenho, nem nunca tive, a genialidade destes que citei, diverti-me a escrever, a comentar e a contra-comentar, vi alguns dos meus textos serem citados em alguns jornais, vi algumas figuras blogosféricas fazerem uso das minhas criações citando ou não o autor, nunca isso me engordou ou me emagreceu. O que a blogosfera me trouxe ao longo destes anos foi muito mais, incomparavelmente mais, do que aquilo que me levou. Porque na verdade só me levou tempo mas deu-me uma grande mão cheia de amigos que preservo e a quem agradeço de o serem.

Tive nos meus blogs caixas de comentários abertas, ainda hoje lá estão e nem todos os comentários eram concordantes com as opiniões que emitia ou nem todos aplaudiam aquilo que eu pensava ter escrito bem. É perfeitamente natural cada um pensar pela sua cabeça e, democrático, dar a liberdade a quem quer se exprimir de que o faça.  Mas em democracia não cabe a palavra terrorismo. Para o terrorismo não tenho paciência é um peditório para o qual não dou. (Dou comigo a conceder o benefício da dúvida de que provavelmente não se trata de um/uma terrorista mas de alguém insane, com forte perturbação mental a quem talvez tenham tirado a medicação necessária). E como não pactuo com o terrorismo, moderei os comentários e decidir apagar todos os comentários anteriores dessa criatura. Pronto.

PS. Quantos aos meus amigos, alguns já voltaram aqui. E se não continuei a escrever no(s) antigo(s) e criei um novo foi porque vou fazer deste algo de diferente. Será outro tipo de escrita que corta um pouco com o estilo do anterior. Faltava dar esta informação.

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sábado, 9 de abril de 2011

5. Febre




Levanto um pouco a cabeça e volto a deitar-me. A luz está apagada e a janela cerrada. Apenas uns tímidos sinais de claridade atravessam as duas frinchas de cima da persiana que não conseguiu baixar na totalidade. Jogo a mão ao relógio e verifico que se aproxima do meio-dia mas não tenho reacção. A cabeça lateja e parece que quer estoirar. Necessidades fisiológicas obrigam-me a levantar mas as pernas não respondem. Tenho febre. Ainda não abri bem os olhos e já estou a engolir paracetamol. Espirro de novo contra o cotovelo e volto-me a deitar um pouco mais aliviado. Cubro a cabeça com o lençol que está agora mais fresco do que quando me levantei. Não tenho fome mas tenho sede. Bebo mais um pouco de água e volto a cobrir a cabeça. Estou fora de época. Estou com febre fora de época. O dia hoje acordou florido mas não acordou colorido.

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sexta-feira, 8 de abril de 2011

4. Luz


Liberdade, libertei-me de um fantasma, esse não voltará a habitar o meu castelo. Tive força, tive engenho e tive arte para o colocar porta fora. Foram muitos anos a olhar com desconfiança, até com ansiedade para vê-lo chegar (eu sabia, eu sempre soube que ele lá estava, escondido e que um dia apareceria). Vi-o chegar envolto numa espessa nuvem de fumo. De fumo não, de nevoeiro, se bem que não me deu qualquer arrepio de frio. Não seria nevoeiro então, seria fumo e ele lá estava a não se deixar ver. Oh ânsia que me estás a barrar a profundidade do campo. Não notas que ele não pode ser visto de perto? Alguma vez alguém viu um fantasma perto dele que lhe pudesse tocar? Fecha o diafragma, enquadra-te, ele vai surgir nítido apesar do espesso véu. Afinal não é tão espesso assim, se o vais conseguir ver é porque é apenas uma diáfana cortina. Não o consigo descortinar ainda mas sei que ele chegou, sinto-lhe a energia. Levantei-me mas tentei não fazer barulho. Não vos queria estar a maçar com pormenores nem teorias mas vocês sabem que os fantasmas ouvem muito bem, não sabem? Então fui, pé ante pé, até à porta, não fiz o mínimo ruído. Se duas moscas nesse momento estivessem à conversa perceber-se-ia tudo quanto elas estivessem a dizer ou, por outras palavras, ouvir-se-ia uma agulha cair em chão de cinza e encarei-o. Olhamo-nos bem nos olhos. Quis falar-lhe mas ele colocou um dedo no nariz a pedir-me que me calasse, depois sorriu. Eu não consegui sorrir para o fantasma, acho, na verdade, que estava até com um pouco de medo. E assim, olhos nos olhos, fechei-lhe a porta do castelo. Acho que ele percebeu. Pela manhã, não havia nevoeiro. O Sol brilhava nas frinchas da minha janela.

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quinta-feira, 7 de abril de 2011

3. Sopro



Hoje sonhei que voava. Bem sei que sonhos não são realidades e parece-me que não haja ninguém que já tenha sonhado pelo menos uma vez na vida que não tenha voado. Ícaro também quis voar e Bartolomeu de Gusmão também. Tantos anos de diferença entre Ícaro, que não sabemos se existiu, e a passarola que nunca voou e todos voamos um dia entre umas asas que foram de cera e o vazio do nosso quarto de cama. Mas este voo foi diferente, foi sobre as montanhas, sabes, aquelas montanhas, que desenhávamos na folha de papel cavalinho, sempre acabadas em bico onde lhe fazíamos um babete recortado de neve. Atravessei os riscos do papel até ao outro lado. Só que do lado de lá nada existia e eu tive de pousar.

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quarta-feira, 6 de abril de 2011

2. Esclarecimento

É a primeira vez que vou falar de mim neste blog e, enquanto de carácter pessoal, será também a última. Os “eus” que irão encontrar nos posts seguintes são os “eus” dos meus textos, das minhas fotografias e dos meus poemas. Ficção ou não, não o esclarecerei.

Tenho quase 56 anos de idade, dois filhos, quase um neto. Tenho instrução superior e fui durante muitos anos director em várias empresas de ponta do nosso país. Isto não faz de mim, nem melhor nem pior do que os outros. Mas a vida que eu vivi, com quem eu privei ou privo, com quem janto ou almoço, ajudaram-me também a moldar o carácter. É por isso, que no meio onde me movimento seja o real seja o cibernético sou uma pessoa respeitada e que sempre soube respeitar terceiros. E isto é um princípio do qual eu não abdico.

E porque sei respeitar, respeito também quem não sabe respeitar os outros. A propósito do nome deste meu novo blog (escrevo em blogs individuais e colectivos há quase oito anos, o que é, apesar de tudo um bom teste à resistência), entrou-me pela sala dentro alguém que sem o conhecer não o posso apelidar, mas que não parece, embora as aparências iludam, ser alguém que deva ser respeitado (ou respeitada pois não sei se se trata de homem com h pequeno ou de mulher também com minúscula). Mesmo assim vou fazê-lo não apagando os comentários ofensivos que me deixou. Vou apenas aqui denunciá-lo, correndo o risco de lhe fazer publicidade gratuita. Não garanto no entanto que continue a admitir a sua insolência no futuro.
Quanto àqueles e àquelas que quiserem seguir este blog como seguiram os meus outros durante tantos anos, estejam à vontade nesta sala, parte de uma casa que também é vossa.

Subscrevo-me como Constantino, um guardador de vacas mas fundamentalmente um guardador de sonhos.

PS. Eu só não serei mais agressivo com esse fulano ou fulana porque sei que ele/a está a fazer uma tremenda confusão com a pessoa a quem ele/a pensa que está a agredir. Por isso não estou a assumir na plenitude que toda a sua verborreia seja contra mim, EU, mas sim contra mim, O OUTRO, que ele/a pensa que eu seja. 

1. Alfa




Tudo me inquieta. Vivo no centro de um turbilhão de incertezas. Atrasos que não consigo ultrapassar para além da minha almofada. As passadeiras estão fora dos locais das travessias de peões. Transporto-me para além das fronteiras da tempestade. Com o vento e com a maré quero rumar mas não sei para onde e não quero que o vento me leve. Tão pouco quero que seja a maré a fazê-lo. De cá para lá e de lá para cá não consigo acordar mais à frente. Estou em atraso. Porque será que a barra de chocolate não quebra pelas divisórias? Os meus gatos assistem a esta inquietação em silêncio. Nem um miado para me trazer (de volta?) à Terra. Levito e lá de cima não gosto do golo falhado em frente às redes. Inquieto-me de novo. Falta-me (falta-me?) qualquer coisa para que eu possa atingir o fim. O que é não sei, talvez não o saiba ainda, mas ouso lutar para o saber. Minto, menti. Acabei de mentir, peço-vos que não acreditem. Não, não luto, apenas sonho que luto e não mexo nem um dedo para mudar nada. Ainda se eu chegasse àquele relógio de parede para fazer parar o tempo e perceber o atraso... Mas está tão alto. Levito de novo mas a parede afasta-se. Faço uma pequena resenha do que me possa ter acontecido. Nem álcool, nem drogas, nada material que me pudesse conduzir a este estado. É de desconfiança, afinal, não é de inquietação. Nada me inquieta, tudo está no seu lugar. Sinto que estou a mentir de novo, mas agora não descubro a mentira. Não sei se é no fim das contas uma tremenda confusão. Eureka, diria, apenas estou confuso, nada mais. Ficarei mais descansado se os deuses, o que está para além do firmamento e que acho que sei quem é e os outros que não conheço mas que sei quem são, forem capazes de fazer parar a parede e me tragam o relógio de volta. Não quero (e não posso) viver neste atraso. Há um autocarro à minha espera.

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