quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

84. Ismael (9) - Açúcar e canela


Lembro ainda dos carrinhos com rodas de madeira, dos índios e dos cowboys montados em cavalos de plástico, dos livros do pato Donald e dos seus três sobrinhos que me dava o Menino Jesus. Lembro-me do frio das noites de Natal que teimava em entrar pela frincha da porta da cozinha e do alguidar de barro onde a massa era batida e abafada. Não amor, com as tuas calças não. Isto é preciso força de homem. E depois de amassada a farinha, bem amassada com água quente e abóbora e um cálice de aguardente, apropriadamente fermentada e umas mãos fortes esmurrando-a e virando-a e, depois de se polvilhar com uma mãozinha de farinha seca, as cinco chagas de Cristo. Um pano branco, muito bem passado a ferro fará a primeira cobertura. Depois os cobertores e as calças de homem. Para levedar e a tornar fofa. À noite, bem à noitinha, a avô sentada em frente ao fogareiro com o óleo bem quente, que um salpico de água haveria de testemunhar a temperatura, esticava as filhós com as mãos e punha-as a fritar. Saíam loiras, fofinhas e bem cheirosas. Ainda hoje me lembro do cheiro daqueles fritos, num misto de aromas de abóbora com aguardente que perfumavam toda a cozinha. Depois eram temperadas com açúcar e canela. Nessa época não se bebia coca-cola e por isso o pai natal não aparecia pendurado nas varandas, nem a bater às janelas das casas. Naquele tempo, os bafos da vaquinha e do burro aqueciam o Menino em leito de palha enquanto Maria e José o adoravam no presépio. Num carreiro, desenhado com areia por entre o musgo, três reis, montados em camelos, seguiam a estrela que o meu pai colocava bem lá no cimo da árvore de Natal e, apesar de nós nunca termos visto neve, bolinhas de algodão penduradas no pinheiro mostravam que dentro de minha casa e apesar do calor da cozinha e do cheiro das filhós, do açúcar e da canela e das fatias douradas que a minha mãe já se preparava para fritar, mostravam que na minha casa também poderia nevar. Mãe, ainda falta muito para o Menino Jesus chegar? Perguntava eu enquanto olhava pelo canto do olho para ver quando é que o Menino deixaria a manjedoura onde dormia de cabelos loiros, muito loiros e bracinhos no ar para vir trazer os presentes à chaminé, até que, vencido pelo sono, já o sapatinho que há horas tinha nas mãos me pendia, era levado ao colo para a cama, com um beijinho e o aconchego dos lençóis.

Um dia relembrava as minhas noites de Natal com Ismael Gúsman. Uma lágrima corria-lhe no rosto. Diz que enquanto o neto cá morou até um triciclo lhe deu. Interrogava-se como é que seria o Natal lá longe para onde tinha emigrado. Depois, quando ficou só, às cinco da tarde fechava a tasca da Rua do Correeiros, já a noite começava a cair e, chegado à Quinta do Conde, comia uma sopa de couves, um naco de pão com qualquer cossita, como ele me costumava dizer, acendia o rádio transístor na mesa de cabeceira e adormecia, talvez ao som do Adeste Fideles. Ah é verdade, Sr. Constantino, pero não foi na noite de Natal, no!. En los Reyes como é o costumbre lá de mi terra. E falou-me de novo no triciclo.

12 comentários:

  1. É, todos os natais trazem consigo esse sabor agri-doce de outros passados, em que a distância daqueles que partiram traz uma certa tristeza! Para lá das eventuais alegrias com as crianças e aqueles que estão próximos! ;)

    Beijocas e Feliz Natal para ti e todos os teus! :)

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  2. São estes contrastes que me deixam ficar triste no Natal, Constantino!
    Como me sinto irmanada nessa tristeza do Ismael!

    Linda e perfeita esta descrição do Natal d`outros tempos. Até senti o cheirinho das flhós polvilhadas de açúcar e canela, que a minha Mãe fazia lá no Alentejo da minha infância.
    E o chocolate quente? Uma delícia!

    Do alguidar com a massa a levedar ser tapado com calças de homem, é que não tenho ideia nenhuma.
    Muito lindo este capítulo natalino.

    Fiquei imenso tempo a admirar a foto. Que originalidade! Maria e Sara - digo eu - a adorar o Menino, de papo para baixo, em amena cavaqueira, é dos presépios mais in que já vi.

    Está de parabéns, Senhor Constantino.

    Festas Felizes. Beijinhos.

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  3. Cá no meu canto sigo encantado a conversa e pela primeira vez penso, sem qualquer amargura, que nunca tive um triciclo... nem um presépio assim feito para mim.

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  4. @Teté - Beijocas, Feliz Natal para ti também.

    @Janita - Na foto do presépio (que achei muito original) é Maria, José e o Menino. Beijinhos e Feliz Natal.

    @Rogério - Já lá pus uma plaquinha de "reservado". E um cavalinho de madeira que baloiçava sem sair do lugar? Um abraço.

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  5. Do natal recordo os cheiros e os sorrisos.
    Hoje não sinto isso...
    Tudo se esfumou e acho que não volta mais.
    Um abraço, pá!

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  6. Bateu-me cá uma saudade... as filhós feitas e comidas à luz do candeeiro a petróleo até tinham outro sabor. E eram a melhor iguaria que se comia ao longo do ano.
    Acabou tudo. Nem avós, nem pais, nem tios... irmãos já foram alguns e as filhós até já se vendem no supermercado.
    Lá está, o tempo é daquelas coisas que deviam vir de fábrica com um interruptor e só o ligávamos quando fosse preciso.
    Boas festas.

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  7. Gosto de recordações... e estas são tão doces. :) E depois ninguém faz filhós como as nossas avós ou mães faziam... :)
    Feliz Natal!

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  8. mesmo com o evento das novas tecnologias, o texto sobrevive-lhes na ternura...

    bom natal

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  9. oi Vítor
    Passando pra deixar um abraço de Natal.
    Estou nesses ultimos dias meio afastado do blog, blogando devagarinho rs visitando pouco também( conforme a lentidao do sinal da net rs), nao poderia deixar de vir agradecer sua acolhida , seus contos maravilhosos que gosto muito de ler.
    E desejar um lindo Natal e 2012 cheio de boas novas , bons dias , sáude pra que possamos seguir em frente .
    Bom Ano e um Feliz Natal Vítor
    com carinho

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  10. AO senhor COnstantino espero que esta noite da conso(l)ada nao tenha o seu rebanho para guardar e esteja junto da sua família nesta noite.
    boas festas para todos e para os netinhos aquele abraço bem apertado

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  11. Estive a pôr a leitura em dia e a imprimir estes teus contos "Ismael" (sabes bem a razão) e este fez-me parar e relembrar os meus natais de miúda, uma árvore enorme e um presépio decorados por todos nós, onde o algodão era apanhado numa fazenda e por vezes ainda vinha com os picos, a família reunida, mas com tanto calor as janelas e portas eram abertas de par em par e sinceramente não me recordo da doçaria, excepto do bolo-rei e arroz doce que a minha MR fazia tão bem. Julgo que não havia nem sonhos de abóbora nem rabanadas e o bacalhau de que nunca gostei, era racionado por ser tão caro.
    Mas era uma chatice esperar pelo Pai Natal (que só vinha depois de adormecermos:) e lá tinhamos sempre algo dentro das posses dos meus pais.

    Ao olhar para os postais imaginava como seria o Natal com neve e digo-te amigo, até hoje ainda não vi neve nem nevar mas cada vez mais detesto este frio do caraças heheheh.

    Ontem tive uma noite genial onde sem consumismos aparvalhados mas numa confratenização fantástica lá recebi: duas laranjas tocadas, umas pantufas a cairem de podre (todos os anos são embrulhadas e bem disfarçadas) que este ano coube-me a mim:) e dois pais Natal para a minha colecção. Ah e uma cx de bombons que dei aos genros que lutaram por ela:):)e resmas de abraços lambuzados e duas chupetas dos netos mais pequenos, que vieram no meu casaco sem me lembrar que as tinha guardado:)

    É triste ter deixado a minha terra, os meus pais e dois irmãos mais novitos e ter passado 3 Natais sem os ver (o meu irmão nunca mais o vi, porque morreu) e ainda ontem me lembrei dele ao ver as reacções do meu neto com um Jeep pequenito e bem rasca que lhe dei, pois não descansou enquanto não o viu bem por dentro e com as tripas de fora...tás ver não é?


    Todos precisamos de açucar, mas por este andar já vi mais longe a ida dos nossos filhos/jovens deste país e nós a pensarmos...como os meus pais pensaram quando parti(mos) de Angola, tal como Ismael!

    Beijos e Boas Festas

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  12. Inexoravelmente, o natal é uma época de lembranças e memórias, ainda que descritas de forma ficcional, acredito que os elementos que o motivaram a escrever, são tão reais...

    Deixo beijo!

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